10 anos de jornalismo em TV pública

(Escrito e publicado em 15 de março de 2019 )

Sem descontar um breve período em que trabalhei para outra emissora, estou há dez anos na TV Câmara de Porto Alegre. São quase três legislaturas de acompanhamento dos 36 vereadores e de nove diferentes presidências. Desde 2013, além de repórter e apresentadora, sou coordenadora de jornalismo do canal. Hoje é o meu último dia no cargo.

No jargão corporativo, diria-se que estou saindo para me dedicar a projetos pessoais. De fato, é pessoalíssimo. Como fazem cada vez mais mulheres, vou buscar no empreendedorismo uma forma de conciliar melhor o trabalho e a maternidade. Vou mudar de ramo, como já fizeram tantos outros jornalistas em busca de algum reconhecimento que se reflita, para além das telas, do microfone ou do papel, também na conta bancária. Não sei se um dia eu volto para o universo do jornalismo político — “nunca diga nunca” é um lembrete sábio quando há paixões envolvidas. O que eu sei é que vai ser muito difícil encontrar outro emprego tão perfeito para mim.

De um lado, a TV Câmara destruiu o meu romantismo e desconstruiu todos os pré-conceitos sobre o espectro ideológico da política. De outro, reforçou as minhas convicções sobre o exercício do jornalismo: contextual, independente, transparente e o mais público possível. Não é fácil, mas é possível. Acho que poucas pessoas têm o privilégio de encontrar, tão cedo na profissão, um trabalho condizente com as suas utopias. Eu tive essa sorte e aproveito a minha saída para compartilhar um pouco do que eu aprendi ao longo desses anos.

É presunção da minha parte pensar que tal experiência interessa a alguém? Talvez. Mas está aí a pedra fundamental do meu próprio decálogo sobre jornalismo: há o que as pessoas querem saber e há o que as pessoas precisam saber. O jornalista precisa ter confiança para escolher o último, sem falsa modéstia. Nós fomos — ou deveríamos ter sido — treinados para isso. O que segue é uma reflexão profundamente pessoal, porém não menos pertinente ao interesse público.

Jornalista aprende a ser cético, a sempre desconfiar, mas podem acreditar em mim: a TV Câmara de Porto Alegre tem liberdade editorial. Há quinze anos, a operação do canal é feita pela Lumiere Produções, empresa escolhida por meio de licitação. São cinco jornalistas, dois cinegrafistas e um produtor executivo para gerar conteúdo, além de uma equipe técnica para a transmissão das sessões plenárias, para gravações em estúdio e para colocar toda a programação no ar. No organograma do legislativo municipal, a TV Câmara é supervisionada pelo Coordenador de Comunicação, um cargo de diretoria indicado pela Presidência. E só. A equipe não conta com nenhum cargo em comissão, como é o caso de outras emissoras legislativas.

Houve tentativas de interferência de presidentes sobre a produção jornalística? Sim. Mas estão cada vez mais raras. Aliás, ultimamente, o mais comum é o presidente dispensar a cobertura da TV para as suas atividades quando há outra pauta que reúna um conjunto de vereadores. O que eu quero dizer é que não há ingerência político-partidária sobre a TV Câmara de Porto Alegre. Independente de quem está no comando da casa, cumprimos o que manda o contrato. São produzidos um telejornal com três edições semanais e outros quatro programas semanais — um de debate, dois de entrevistas e um de reportagem. Fora as atividades institucionais da Câmara Municipal, cuja cobertura é regular, todas as pautas e fontes são definidas pelos próprios jornalistas da TV. Não há revisão, aprovação ou qualquer censura prévia aos nossos conteúdos. Pode parecer milagre, mas não é. Foi trabalho mesmo.

Trabalho insistente de refutar cada pedido para editar matérias antes de irem ao ar; de manter gravações sobre temas importantes mesmo quando a base dos governos tentava esvaziá-las; de explicar reiteradamente a importância de mostrar os diferentes lados de uma questão, mesmo quando isso significava dar voz a uma oposição decrescente em tamanho de bancada. Talvez ainda haja vereadores que não concordem com a realização de debates ou com a própria existência da TV Câmara (ela custa caro, apesar de jornalistas terceirizados ganharem vertiginosamente menos do que os profissionais concursados ou os CCs do legislativo), mas eles não se manifestam mais publicamente.

É claro que o mérito não é só meu. A conquista da credibilidade é reflexo de uma equipe extremamente profissional, comprometida e cooperativa. Porém, não posso negar que o privilégio de ter uma família para me alimentar, caso eu perdesse o emprego, certamente ajudou a bancar algumas “intransigências” jornalísticas. Em todo caso, se é que é possível um trabalhador terceirizado deixar uma espécie de legado a um órgão público, tenho um orgulho imenso de sair da TV Câmara sabendo que as nossas diretrizes editoriais são respeitadas pelos vereadores. A vocação jornalística do canal parece institucionalizada, ainda que nenhum documento garanta isso. Não sei como será após a próxima licitação, mas tenho total convicção de que a atual equipe vai dar continuidade a esse trabalho.

Não sei se gestão e gestação têm alguma raiz etimológica em comum, só sei que há muito de materno na relação que desenvolvi com os meus colegas. Descobri o quanto vale a pena cuidar das pessoas, defender seus interesses, compartilhar dificuldades e superar inseguranças. Poucas experiências são mais recompensadoras do que enxergar o potencial de alguém e proporcionar as condições para que o talento se desenvolva. Meus queridos, sou muito grata pela oportunidade de vê-los crescer. Certamente, vocês estão mais prontos do que eu para o corte desse cordão umbilical. Sei o quanto é raro encontrar um ambiente de trabalho sem competitividade e com tanta confiança mútua. É disso que mais vou sentir falta.

Há muitos fatores subjetivos na montagem de uma equipe. Nas seleções de repórteres e produtores, eu sempre procurei aquela fagulha de altruísmo impossível de ser fingida. Foi mais instintivo do que premeditado, mas hoje vejo o quanto isso é importante para a imagem da TV Câmara. Se o jornalismo é uma espécie de sacerdócio, o zelo com a coisa pública também é. Nesse sentido, a vaidade não serviria a ninguém, assim como não costuma servir à cidade quando impera em decisões políticas.

O ambiente político é desgastante. Ver de perto a disputa cotidiana por poder me fez entender por que, na maioria das vezes, os inescrupulosos se sobressaem. Talvez o maior desafio de trabalhar nesse meio seja não se tornar cínico. Mas também é preciso não ser ingênuo. Enquanto as pessoas forem egoístas e propensas às corrupções mais sutis, não há porque esperar algo diferente da classe política. Eu sou absolutamente contra a demonização da política. Penso que desmistificá-la seria o primeiro passo para melhorar a nossa representação. Político também é gente, ainda que nem sempre seja gente como a gente.

Ao longo desses anos, entrevistei muitos políticos. Aprendi que algo mágico acontece quando duas pessoas sentam, frente a frente, e se comprometem a ouvir e falar por um período determinado de tempo. Sem assessores, sem telefone, sem escudos. É nesse momento que se revela a humanidade das pessoas. Há os que revelam pouca vida, quase nenhuma história, que não gostam de perguntas difíceis. Parecem meros reprodutores de manuais doutrinários. Desse tipo, é preciso desconfiar, independente do espectro ideológico. Só quem dialoga é capaz de construir boas soluções. Nesse sentido, sei que temos bons políticos em Porto Alegre, na esquerda e na direita. No momento mágico da entrevista, ouvi confissões, desculpas, remorsos. Vi lágrimas sinceras. É a melhor oportunidade para entender as razões de cada um para determinados comportamentos. E se a gente entende de onde as coisas vêm, fica mais fácil prever para onde vão e, se necessário, corrigir o curso.

A proximidade com o poder é sempre perigosa, cabe cautela nessa relação. Também por isso, em muitos momentos, procurei ser quase invisível. Me despedi de pouquíssimos vereadores, a maioria nem vai notar minha ausência na semana que vem. Afinal, ninguém é insubstituível. E, para o fim que se destina esse tipo de jornalismo institucional, o melhor é não pessoalizar. De pessoal, levo a minha percepção sobre o futuro da capital: complicadíssimo. Em quase uma década como moradora, vi a cidade piorar em quase tudo. Porto Alegre pode ser demais, mas está suja demais, esburacada demais, insegura demais. Em breve, a Câmara Municipal deve fazer a revisão do Plano Diretor, uma das principais leis municipais, capaz de organizar a urbanidade. Espero me surpreender, mas, pela minha experiência, poucos parlamentares têm a sobriedade e o fôlego intelectual para esse debate.

Um dos privilégios de trabalhar na TV Câmara foi conhecer a cidade e as suas leis como poucos porto-alegrenses natos. O legislativo municipal me levou à Porto Alegre profunda: das ruas sem nome, sem luz, sem água; dos barracos em que ratos comem dedinhos de bebês; das comunidades reféns em que até vereadores são convidados a se retirar mediante o som nada sutil de tiros. Por outro lado, conheci a Porto Alegre que raramente aparece nos noticiários comerciais: a capital da beleza do Morro do Osso, da profícua produção científica, das inúmeras iniciativas bacanas de moradores e servidores municipais. Não foi amor à primeira vista, mas Porto Alegre me conquistou. Quando decidi deixar a TV Câmara, tomei também a decisão de transferir o meu título eleitoral. Vou estar mais longe do parlamento, mas ele sempre terá a minha atenção. Agora sou eleitora e 2020 está quase aí. Aos que ficam, só posso dizer o que digo todos os dias: qualquer coisa, me liguem. Vou precisar me manter informada.

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